Funcionário da Voepass relata ‘remorso desgraçado’ por não ter registrado por escrito falha; ouça áudio

O trágico acidente do voo 2283 da Voepass, ocorrido em 9 de agosto de 2024, levanta questões alarmantes sobre segurança aérea, responsabilidade corporativa e transparência no setor da aviação brasileira. A aeronave turbo-hélice ATR 72-500, que decolou de Cascavel com destino a Guarulhos, caiu em Vinhedo (SP) e matou todos os 62 ocupantes. Agora, cerca de um ano depois, detalhes reveladores vêm à tona e escancaram uma sequência de falhas humanas, técnicas e sistêmicas.
Falha ignorada e omitida
A principal revelação diz respeito ao sistema de degelo da aeronave — essencial para a segurança do voo em condições de formação de gelo. Um áudio obtido pelo programa Fantástico mostra dois funcionários da manutenção da Voepass, sem saber que estavam sendo gravados, lamentando não terem reportado a pane no sistema. Um deles confessou estar com “remorso desgraçado” e admitiu: “Errei, errei de não ter mandado por escrito.” O outro sugeriu guardar provas, chamando o episódio de “sujeira”.
Antes da tragédia, a aeronave havia feito um pouso em Ribeirão Preto, e o comandante daquele voo pediu manutenção para o sistema de degelo. No entanto, não formalizou a falha no diário de bordo, o que permitiu a liberação do avião para a decolagem seguinte — a que resultaria no desastre. Um mecânico confirmou que a tripulação era pressionada a evitar registros de panes para não comprometer as operações. A segurança foi secundarizada.
Condições climáticas extremas e falha operacional
A meteorologia daquele dia indicava formação intensa de gelo em todos os níveis de voo, segundo ex-funcionários e pilotos. O comandante Luiz Cláudio de Almeida, que já havia operado o mesmo modelo e conhecia bem o “Papa Bravo”, afirmou que o sistema de degelo da aeronave jamais funcionou corretamente.
Apesar dos alertas, a aeronave subestimou as condições climáticas. O sistema de degelo foi ativado três vezes, mas não foi suficiente para manter a estabilidade. Ao fazer uma curva na aproximação para o pouso, o avião perdeu sustentação e caiu. Especialistas apontam que, conforme os manuais, a altitude deveria ter sido reduzida para derreter o gelo — algo que não ocorreu.
Histórico de problemas e falta de controle
Não era a primeira vez que a Voepass (antiga Passaredo) enfrentava problemas sérios de manutenção. Em 2016, um ATR da empresa pousou por engano em uma pastagem em Rondonópolis (MT). Essa aeronave foi posteriormente “canibalizada” para fornecer peças a outros aviões. Segundo relatos de ex-funcionários, essa prática era comum e havia pouco controle sobre a origem das peças reutilizadas.
A aeronave envolvida no acidente, o PS-VPB, já era conhecida internamente por apresentar problemas crônicos. Mesmo assim, continuava sendo usada em rotas comerciais.
Passageiros enganados e justiça atrasada
Outro ponto crítico está na forma como os passageiros foram levados a bordo. Muitos pensavam estar voando pela Latam, já que a venda das passagens foi feita pela gigante aérea. A sigla “operado por 2Z” — que representa a Voepass — aparecia apenas em letras pequenas na reserva e discretamente no cartão de embarque. Não havia clareza nem advertência sobre o modelo da aeronave nem sobre a empresa efetivamente responsável pelo voo.
A dor das famílias é imensurável. Eduarda Hubner, filha de dois passageiros que morreram no acidente, relatou como a perda dos pais a obrigou a assumir um papel materno para os irmãos. Ari e Ercília perderam o filho e a nora, que sonhavam com um bebê em 2025. As famílias criaram uma associação para buscar respostas, justiça e responsabilização.
Um ano depois, justiça ainda espera
Até hoje, o relatório final do CENIPA (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) não foi divulgado. A empresa Voepass só foi impedida de operar em 24 de junho de 2025, quase onze meses após a tragédia — uma demora que causa revolta em parentes e especialistas.
As famílias querem o conteúdo do gravador da cabine, querem saber o que foi dito nos últimos minutos, e querem entender por que o avião decolou mesmo com falhas críticas ignoradas. A tragédia do voo 2283, portanto, não foi um simples acidente — foi o resultado de negligência, omissão e despreparo. Um desastre que poderia — e deveria — ter sido evitado.